É conversando que a gente se entende?

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Miscelânia

Andava pela praia, observando duas gaivotas que brigavam por um côco seco. Os bicos se batiam e elas davam gritinhos uma para a outra, na tentativa de amedrontar e encerrar a disputa.

Ela: Tempos árduos para vocês também – Disse a elas, que a ignoraram e continuaram a briga com mais bicadas e mais gritinhos.

Ele já estava sentado na pedra, a pedra que um dia havia sido de ambos e que hoje era só dele. Fazia tempo, muito tempo.

Ela: Oi.
Ele: Olá... Você demorou.

“Vinte anos”, pensou ela, mas não disse nada.

Ela: Como está?
Ele: Nada bem. Minha mãe faleceu mês passado, depois de sofrer bastante.
Ela: Ela não merecia isso.
Ele: Não.

Ela se sentou ao seu lado na pedra, fitando o mar azul turquesa. O silêncio que se formou era pesado e quase táctil, uma grossa parede de concreto entre eles. Lembranças de beijos e abraços tomaram sua mente e ela acendeu um cigarro.

Ele: Como ele está?
Ela: Bem. Viajando. Em um encontro na Dinamarca.
Ele: Sempre ocupado.
Ela: E ela?
Ele: Não sei. Não nos falamos há algumas semanas.

A frase foi como um soco na boca de seu estômago.

Ela: Vocês...
Ele: Divorciado. Eu imaginei que me sentiria mais leve.
Ela: E se sente como?
Ele: Nunca fui bom com essa coisa de palavras e sentimentos. Você sabe.
Ela: Eu sei.

Deu um longo trago no cigarro.

Ele: E você não largou essa bosta.
Ela: Eu não larguei muitas coisas.

Ele a fitou de modo estranho.

Ele: Você quer dizer que...
Ela: Não tive coragem.

Respondeu rapidamente, como que se quisesse se livrar daquele segredo. Não houvera tido coragem. A realidade era pesada demais para que pudesse suportá-la sozinha.

Ele: Mas nós...
Ela: Há vinte anos não existe um nós. Não abra a sua boca para falar essa palavra, a única que você sempre conheceu foi “eu”.

Ele permaneceu em silêncio, ela se arrependeu do tom.

Ela: Me desculpe.
Ele: Eu te entendo.
Ela: É que... Já foram tantas as vezes. Você me disse o mesmo tantas outras mesmas vezes e nós nunca...
Ele: Nós nunca tivemos uma chance.
Ela: Sim, nós tivemos.
Ele: Isso foi há vinte anos.
Ela: Não, isso foi há dez anos. E depois isso foi há cinco anos e foi isso também há dois anos. Porque agora?
Ele: Estou morrendo.

Ela segurou o cigarro firme entre os dedos.

Ele: É verdade. Os exames saíram no mês passado. Eles dizem que não há mais nada a fazer.
Ela: Quanto... Quanto...
Ele: Seis meses. Um ano, no máximo.

Deu um trago no cigarro, enquanto imagens passadas penetraram sua mente, fazendo com que se esquecesse de tudo; a praia, as gavoitas disputando o côco seco, a pedra, ele ali com ela. Tudo fazia parte de um passado distante.

Ele: Por favor, diga alguma coisa. Não é fácil dizer que se está morrendo e ficar neste silêncio. Já vou ter que aturar bastante silêncio no lugar prá onde vou daqui a algum tempo.
Ela: Estou grávida.

Silêncio da parte dele.

Ele: Isto justifica o silêncio.

Ela o fitou durante alguns momentos. Depois de dar um longo trago no cigarro, o apagou na pedra e jogou a bituca no chão.

Ele: Você não deveria estar fumando.
Ela: Nem deveria ter jogado a bituca no chão.
Ele: Nem deveria estar casada.
Ela: E você não deveria estar morrendo.

Silêncio.

Ele: Eu nunca deveria ter te abandonado.
Ela: Eu não deveria ter deixado você ir embora.
Ele: Então não vá embora. Fica comigo.
Ela: Até quando?
Ele: Até o final.

Finalmente uma das gaivotas ganhou a disputa e saiu voando, triunfante com seu côco seco.

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei a nova surpresa.
As usual, no news.

Adoro, menina-poema!