É conversando que a gente se entende?

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Repetição

O telefone toca e é atendido no terceiro toque.

- Alô?
- Oi... – Ela torce nervosamente uma mecha do cabelo.
- Alô? – A voz se repete.
- Oi! – Fala mais alto, esforçando-se para não gaguejar.

Um silêncio incômodo toma conta da conversa.

- Um momento, por favor.

Ela ouve passos que se afastam de um ambiente barulhento. Música, conversas, risadas. Os sons se fazem cada vez mais distantes. Uma porta se fecha.

- Olá, pode falar.
- Está ocupado? – Torce novamente a mecha de cabelo.
- Estou numa confraternização do trabalho. Mas pode falar.

Secura. Rapidez. Até mesmo um pouco de irritação, tudo isso presente naquela voz que tempos atrás era como música para seus ouvidos. Respira fundo.

- É que... Bem, você anda sumido.
- Muito trabalho e algumas viagens de negócios. Andei fora da cidade.
- Você disse que me ligaria e eu... Bem, fiquei esperando.
- Não deu.

Não deu. Simples assim. Simples assim, ao invés de todas as desculpas que ela imaginou serem capazes de existir. Sentiu-se tola por esperar tanto para procurá-lo, se seria esta a única resposta que receberia em troca de sua angústia.

- Não deu? Bem... E porque não deu?
- Um momento. – Uma porta se abre. Uma voz feminina diz alguma coisa, mas ela não é capaz de ouvir pois ele já tapou o bocal do telefone com a mão. Uma risada feminina, mais algumas palavras dele. Nova risada dela, risada dele. Porta bate e ele volta a falar. – Oi, me desculpe.
- Vejo que está ocupado. Talvez fosse melhor nós nos falarmos outra hora.
- Não, discordo. Acho que é um ótimo momento para falarmos. Pode dizer.

Ela respira fundo mais uma vez. Procura a bolsa e acende um cigarro, ligeiramente trêmula.

- Você vai me dizer... Bem, o que aconteceu?
- Não aconteceu nada. Já disse, ando ocupado.
- Há algum tempo atrás você me ligaria de madrugada, se estivesse ocupado.
- Bem... Sim, talvez, há algum tempo atrás.

Silêncio. Ela teme dizer mais alguma coisa e ouvir como resposta qualquer uma das justificativas todas que já passaram por sua cabeça. O corre-corre da vida moderna. Muito trabalho no escritório. Seu chefe anda enlouquecendo-o. Ele conhecera uma outra pessoa.

- Você conheceu outra pessoa?
- Bolas, Hanna. Lá vem você de novo com as suas inseguranças.
- Então não conheceu?
- Eu não sei porque deveria responder esta sua pergunta.
- Porque talvez queira que eu acredite na sua resposta?
- Bobagem. Se eu disser que não você não vai acreditar em mim. Vai perguntar quem ela é, se eu já a conheço faz tempo, quantos anos ela tem, o que faz, se é casada, se já foi casada, se tem filhos, se está grávida. Não adiantaria nada eu negar.

Ele a conhecia bem. E ela se detestava por ser exatamente a pessoa que ele achava que ela era.

- Então... Não conheceu?
- Trabalho me relacionando com as pessoas. Conheci muitas pessoas nas últimas semanas.
- Não é disso que estou falando, e você entendeu muito bem a minha pergunta.
- A propósito, e se eu tivesse conhecido? O que teria você a ver com isso?

Dá um trago no cigarro, soltando a fumaça com força.

- Nada. Eu não teria nada a ver com isso.
- Ora, não faça isso com você mesma. Você sempre faz isso.
- O que eu estou fazendo?
- Sentindo pena de si mesma. Isso me dá nos nervos.
- Eu não estou sentindo pena de mim mesma. Estou apenas tentando entender porque é que você sumiu.
- Mas é aí que não estamos concordando. Eu não sumi. Não sumi porque nunca estive aí de verdade.

Uma dor profunda e lancinante na boca do estômago, como se tivesse sido alvejada por cem facas ponteagudas.

- O que você quer dizer?
- Acho que você sabe, Hanna.
- Não, eu não sei.
- Você espera de mim coisas que eu não sei dar. Você espera que eu seja uma pessoa que eu não sou, e a cada vez que percebe que não sou esta pessoa você me julga e acha que o problema é que você não é boa o suficiente. Que não foi boa o suficiente.
- Isso não é verdade!
- É sim, e você sabe disso. Quando nos conhecemos deixei bem claro que não queria me envolver. Eu disse que não tinha pretensão nenhuma de me casar, de ter uma família, filhos, de sequer planejar um final de semana em comum. Eu nunca disse a você coisas que eu não poderia cumprir.
- Mas... Nós planejamos finais de semana!
- Não. Você planejava os finais de semana, os seus finais de semana, em função dos meus. Eu nunca planejei nada.
- Mas... – As palavras fugiam-lhe à mente. – Mas eu... Eu terminei meu noivado por sua causa!
- Não, você terminou o noivado por sua causa, e por mais ninguém. Você não gostava mais do seu noivo, não suportava a idéia de ter de passar o resto da sua vida ao lado dele. Eu fui apenas o catalizador disso.
- Não é verdade! Você disse que eu deveria deixá-lo! – As mãos tremem a ponto de derrubar o cigarro nos lençois da cama.
- Sim, e continuo achando que fez bem, se não o amava mais... Mas eu nunca disse para abandoná-lo por minha causa. Nunca lhe prometi nada.
- Nem apenas palavras formam uma promessa! Olhares também prometem!

A risada que ouviu do outro lado da linha começa tímida e termina em uma gargalhada.

- Olhares? Olhares querem dizer alguma coisa agora?
- Seu... seu...
- Ora, Hanna... Me poupe da sua conversa. O negócio que tínhamos sempre foi muito claro. Nos vemos, trepamos um sexo sujo e sem romance, às vezes passamos a noite juntos, às vezes não. Quando posso te telefono, quando pode você atende. Sem promessas, sem juras de amor. Sem amanhã.
- Mas da última vez... Da última vez foi você quem quis reatar!
- Reatar? Do que você está falando?

Ela se enerva. As palavras fogem-lhe. Ela sente ódio.

- Da última vez em que você sumiu. Foi você quem me procurou. Se não queria nada comigo, porque me telefonou? Já havia sido bastante sofrida a primeira vez...
- Mas do que você está falando? É claro que eu queria alguma coisa com você. Queria com você exatamente a mesma coisa que tivemos.

Ela não quer, mas começa a chorar ao telefone. Se esforça para controlar as lágrimas, mas as lágrimas não querem ser controladas, querem ser choradas em um choro descontrolado e triste.

- Ora, Hanna... Vamos lá. Nos divertimos juntos, rimos, bebemos, tivemos ótimas noites de sexo. Para que complicar tudo?
- Porquê? Que tal “porque eu amo você?”
- Não diga isso, não é verdade. – Silêncio – É impossível que você me ame quando...

Silêncio. Impossível continuar.

- ... Eu não sinto o mesmo por você. – Seu tom de voz muda. – Puxa, Hanna... Eu nunca imaginei. Nunca mesmo, eu...
- Não diga mais nada. – As lágrimas corriam livres, soltas e tristes por seuas faces – Por favor, não posso mais...
- Hanna, me desculpe, de verdade. Se eu soubesse disso antes eu...
- O quê? O quê teria feito?
- Bem, eu não teria te procurado tantas vezes. Não, definitivamente não teria passado da primeira noite.

Silêncio e mais silêncio.

- Vou desligar. Por favor, não me procure mais.
- Não... Pode ficar tranquila. Não volto a te procurar Hanna. Eu... sinceramente espero que seja feliz.

Palavras erradas.
Todas erradas.

Repetição.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Aceitação

A porta bate mais silenciosa do que era de costume; ela prende a respiração involuntariamente, sentindo-se um pouco tonta.

Ouve passos no corredor e fita a entrada do quarto com olhos atentos, mas os passos param antes de chegar à sua porta. Depois de alguns segundos os passos tornam-se mais distantes e baixos, até se tornarem inaudíveis.

Ela olha pela janela. Lá fora faz um belo dia de primavera, as trepadeiras começando a ostentar os pequenos botões amarelos que, em alguns dias, serão flores em seu parapeito. Nuvens muitos brancas e fofas ornam o céu profundamente azul. Nada lá fora se parece com a tormenta que se passa em seu interior.

Caminha pelo corredor até a sala, mas é na cozinha que vê seu vulto. Ele coloca uma chaleira no fogo.

Ela: Chegou cedo.
Ele: Não me senti bem.

Ela percebe que é de propósito que ele evita seus olhos e amaldiçoa-o por ser tão transparente. Raios, como isto poderia ser mais fácil?

Ela: Fiz panquecas de batata e legumes para o almoço. Estão bons ainda, posso esquentar para você.
Ele: Não se incomode. Estou sem fome.
Ela: Tem certeza? Não levaria mais do que dois minutos...
Ele: Obrigado. Não se incomode.

O ventilador gira no teto, um casal de passarinhos parece discutir em um ninho em uma das árvores do jardim. Sons que fariam falta, fariam sim. Ela se senta à mesa da cozinha, alisando a toalha com as pontas do dedos.

Ele: Você está pronta?
Ela: O que quer dizer?
Ele: Quer dizer, você está pronta?
Ela: Eu não sei. Acho que nunca vou saber.
Ele: Eu achei que você tivesse certeza.
Ela: Eu também.

Dois pares de olhos azuis encontram castanhos; ela sente uma fisgada no peito para logo depois constatar que os olhos azuis já se afastaram dela, fitando novamente a chaleira como se isso fizesse a água ferver mais rápido.

Ela: Eu não queria que fosse assim.
Ele: Ninguém queria. Eu acho que isso é natural.
Ela: Natural?
Ele: Eu quero dizer... Estas coisas acontecem, não é? Do pó viemos, ao pó voltaremos...
Ela: Não diga isso.
Ele: A volta dos que não foram... Conhece esta expressão? Sempre me perguntei sobre seu significado. Hoje à tarde eu o descobri.
Ela: Qual é?
Ele: É porque ainda não chegaram onde tinham que chegar. Entende? A volta dos que não foram... Porque não foram... Ainda.
Ela: Eu entendo.

O relógio bate as seis horas; como de costume, na terceira badalada eles começam a ouvir as do sino da Igreja, a dois quarteirões de distância. Sôfrego. Violento. Cada badalada é uma facada em seu peito e ela luta para conseguir dizer as palavras que precisa até o final.

Ela: Eu pensei um pouco e...
Ele: Sim?
Ela: Não sei se isto é o mais correto de se fazer.

Olhos azuis voltam a encarar os castanhos. Estaria enganada ou percebera neles uma faísca de esperança?

Ele: O que você quer dizer?
Ela: Quero dizer que não tenho mais certeza se é isso que eu quero.
Ele: Não tem mais certeza?
Ela: Não, bem... Quero dizer, já faz tanto tempo. Talvez desta vez eu esteja, afinal, pronta.
Ele: Você tem certeza do que está dizendo?
Ela: Não mas, afinal de contas, do que é que podemos ter certeza? Só de que vamos morrer um dia.

Ele se aproxima e pega seu rosto com as mãos. Sem conseguir se controlar beija sua boca, suas faces, sua testa, seus olhos.

Ele: Você sabe o que isso quer dizer?
Ela: Que nós vamos ter um bebê. Se você ainda quiser.
Ele: Não faz o menor sentido desistir dele.
Ela: Não, não faz.

Uma fina lágrima escorre do canto de um dos olhos azuis. Os olhos castanhos tornam-se repentinamento mais brilhantes.

Ele: Obrigado.

A chaleira apita, liberando uma fina e volátil coluna de vapor. Lá fora, sem que ninguém testemunhe, a primeira flor amarela se abre. É Primavera.