É conversando que a gente se entende?

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Aceitação

A porta bate mais silenciosa do que era de costume; ela prende a respiração involuntariamente, sentindo-se um pouco tonta.

Ouve passos no corredor e fita a entrada do quarto com olhos atentos, mas os passos param antes de chegar à sua porta. Depois de alguns segundos os passos tornam-se mais distantes e baixos, até se tornarem inaudíveis.

Ela olha pela janela. Lá fora faz um belo dia de primavera, as trepadeiras começando a ostentar os pequenos botões amarelos que, em alguns dias, serão flores em seu parapeito. Nuvens muitos brancas e fofas ornam o céu profundamente azul. Nada lá fora se parece com a tormenta que se passa em seu interior.

Caminha pelo corredor até a sala, mas é na cozinha que vê seu vulto. Ele coloca uma chaleira no fogo.

Ela: Chegou cedo.
Ele: Não me senti bem.

Ela percebe que é de propósito que ele evita seus olhos e amaldiçoa-o por ser tão transparente. Raios, como isto poderia ser mais fácil?

Ela: Fiz panquecas de batata e legumes para o almoço. Estão bons ainda, posso esquentar para você.
Ele: Não se incomode. Estou sem fome.
Ela: Tem certeza? Não levaria mais do que dois minutos...
Ele: Obrigado. Não se incomode.

O ventilador gira no teto, um casal de passarinhos parece discutir em um ninho em uma das árvores do jardim. Sons que fariam falta, fariam sim. Ela se senta à mesa da cozinha, alisando a toalha com as pontas do dedos.

Ele: Você está pronta?
Ela: O que quer dizer?
Ele: Quer dizer, você está pronta?
Ela: Eu não sei. Acho que nunca vou saber.
Ele: Eu achei que você tivesse certeza.
Ela: Eu também.

Dois pares de olhos azuis encontram castanhos; ela sente uma fisgada no peito para logo depois constatar que os olhos azuis já se afastaram dela, fitando novamente a chaleira como se isso fizesse a água ferver mais rápido.

Ela: Eu não queria que fosse assim.
Ele: Ninguém queria. Eu acho que isso é natural.
Ela: Natural?
Ele: Eu quero dizer... Estas coisas acontecem, não é? Do pó viemos, ao pó voltaremos...
Ela: Não diga isso.
Ele: A volta dos que não foram... Conhece esta expressão? Sempre me perguntei sobre seu significado. Hoje à tarde eu o descobri.
Ela: Qual é?
Ele: É porque ainda não chegaram onde tinham que chegar. Entende? A volta dos que não foram... Porque não foram... Ainda.
Ela: Eu entendo.

O relógio bate as seis horas; como de costume, na terceira badalada eles começam a ouvir as do sino da Igreja, a dois quarteirões de distância. Sôfrego. Violento. Cada badalada é uma facada em seu peito e ela luta para conseguir dizer as palavras que precisa até o final.

Ela: Eu pensei um pouco e...
Ele: Sim?
Ela: Não sei se isto é o mais correto de se fazer.

Olhos azuis voltam a encarar os castanhos. Estaria enganada ou percebera neles uma faísca de esperança?

Ele: O que você quer dizer?
Ela: Quero dizer que não tenho mais certeza se é isso que eu quero.
Ele: Não tem mais certeza?
Ela: Não, bem... Quero dizer, já faz tanto tempo. Talvez desta vez eu esteja, afinal, pronta.
Ele: Você tem certeza do que está dizendo?
Ela: Não mas, afinal de contas, do que é que podemos ter certeza? Só de que vamos morrer um dia.

Ele se aproxima e pega seu rosto com as mãos. Sem conseguir se controlar beija sua boca, suas faces, sua testa, seus olhos.

Ele: Você sabe o que isso quer dizer?
Ela: Que nós vamos ter um bebê. Se você ainda quiser.
Ele: Não faz o menor sentido desistir dele.
Ela: Não, não faz.

Uma fina lágrima escorre do canto de um dos olhos azuis. Os olhos castanhos tornam-se repentinamento mais brilhantes.

Ele: Obrigado.

A chaleira apita, liberando uma fina e volátil coluna de vapor. Lá fora, sem que ninguém testemunhe, a primeira flor amarela se abre. É Primavera.

Um comentário:

marcos disse...

Me emocionou.
Beijo & stay as you are.